É sabido que a nossa capacidade visual é extremamente limitada, inclusive alguns animais têm uma visão acentuadamente mais acurada, a exemplo da águia americana, Haliaeetus leucocephalus (águia-de-cabeça-branca), que enxerga cerca de oito vezes mais do que os humanos. Do ponto de vista da audição, também os ouvidos humanos são limitados, não conseguindo captar todos os sons existentes, sendo superados pela audição de diversos animais, a exemplo de golfinhos e morcegos.
Ora, se do ponto de vista físico, químico e biológico há que se ter cuidado com o que os nossos olhos não veem e os nossos ouvidos não conseguem ouvir, aos que militam com as palavras, com os argumentos, com interpretações de textos legais, religiosos etc., a cautela deve ser multiplicada porque se está a lidar com o reino delicado e, por vezes, fluido das palavras.
Aqui, cabe a reflexão do filósofo alemão Hans–Georg Gadamer (1900-2002) na obra O problema da consciência histórica1:
Pensemos na interpretação de um texto. Tão logo descubra alguns elementos compreensíveis, o intérprete esboça um projeto de significação para todo o texto. Mas os primeiros elementos significativos só vêm à luz se ele se entregar à leitura com um interesse mais ou menos determinado. Compreender “a coisa” que surge ali, diante de mim, não é outra coisa senão elaborar um primeiro projeto que se vai corrigindo, progressivamente, à medida que progride a decifração. Nossa descrição não é mais do que uma forma de “abreviação”, já que se trata de processo muito mais complicado: de início, sem uma revisão do primeiro projeto, nada há que possa constituir as bases de um novo significado; além disso, ocorre concomitantemente que os projetos discordantes entre si ambicionam constituir a unidade de significação, até que a “primeira” interpretação tente substituir os conceitos nela pressupostos por outros conceitos mais adequados.
A própria ciência tem levantado cortinas de equívocos. Mas há quem postule que tudo quanto a inteligência do homem não consegue criar, o acaso criou. Nessa perspectiva, o acaso seria de extrema precisão, não somente porque teria criado a natureza com todos os seus ciclos ordenados, relacionados, sequenciais e causais, como também por ter originado a própria inteligência do homem. Para a Doutrina Espírita, é indubitável que Deus é o Criador do Universo, a Inteligência Suprema e Causa Primeira de todas as Coisas. Somente uma Causa Inteligente pode criar efeito inteligente, axioma muito bem explicado pela Codificação Espírita.
É necessário atentar para a nossa limitação, e esse é o primeiro passo para a dilatação dos horizontes, através da busca de conhecimentos e da necessária reflexão.
À época de Jesus, prevaleciam interpretações equivocadas sobre a Lei de Deus, as quais não se coadunavam com a grandeza do Criador. E, mesmo tendo o Mestre corrigido muitas delas, a Humanidade ainda costuma conceber Deus à sua imagem e semelhança, ou seja, humanizam Deus, ao invés de procurar divinizar-se, no limite da possibilidade de Espírito relativamente perfeito, tal como propõe Jesus ao asseverar Sois deuses.
Em diversas passagens do Evangelho, percebemos as correções que Jesus fez da interpretação da lei, sempre concebendo-a de forma a entender Deus como Amor, Justiça e Misericórdia. Dois dos muitos exemplos dessas retificações hermenêuticas podemos observar:
- no episódio da mulher que seria apedrejada por adultério. Havia a Lei Mosaica, que autorizava o apedrejamento e havia a Lei Romana, segundo a qual, por estar Israel submetida ao jugo do Império Romano, precisava de autorização de representante do imperador para aplicar a pena capital, segundo o historiador do povo hebreu, Flávio Josefo. Jesus aplica a lei do amor, mas não o suposto amor, que desconhece a disciplina. Ele a conclama a não voltar a pecar;
- nas curas que Jesus fez ao sábado, denotando que as ações benéficas não podem ter solução de continuidade e que a oração mais agradável a Deus é o serviço aos necessitados.
Duas das definições da palavra intérprete são: pessoa que atua como intermediária entre os que não falam a mesma língua, traduzindo aquilo que dizem de um idioma para outro, e pessoa que esclarece o sentido de alguma coisa. Indubitavelmente, Jesus é o Excelso Intérprete da Lei de Deus e o Esclarecedor por excelência de como podemos e devemos concretizar Essa Lei, em nosso roteiro de autoiluminação. Mas precisamos treinar os nossos olhos e ouvidos para ver e ouvir, respectivamente.
Que possamos dilatar o nosso horizonte, a fim de que logremos nos transformar em sal da terra e luz do mundo.
Referências
- GADAMER, Hans–Georg. O problema da consciência histórica: Conferência 5 – Esboço dos fundamentos de uma hermenêutica. Organizador: Pierre Fruchon. Tradução de Paulo César Duque Estrada. Rio de Janeiro: FGV, 2006. p. 61. ↩︎
Nota
Este artigo foi originalmente publicado no site Mundo Espírita. Para acessar o conteúdo original, clique aqui.